O primeiro boxeador negro a conquistar o título mundial dos pesos pesados sofreu na pele o racismo escancarado dos EUA, por volta de 1910.
Quando Jack Johnson concluiu esse feito histórico, a América assistiu a diversos conflitos raciais com demonstrações de orgulho negro, assim como a raiva da maioria branca que se autodenominava superior, física e mentalmente falando. De acordo com Randy Roberts, autor de uma biografia a respeito de Johnson, "nunca antes um evento causou tantos tumultos. Até o assassinato de Martin Luther King Jr., nenhum outro evento traria reação similar".
A verdade é que Johnson gostava de chocar e era desafiador. Dirigia automóveis rápidos e caros, mantinha relação com mulheres brancas e também com prostitutas, dominava com fluência três idiomas, o inglês, o francês e o espanhol, e, além de tudo isso, tocava baixo. Ou seja, Jack Johnson saía, perigosamente, do caminho que um negro deveria seguir na sociedade americana racista da época.
Jeffrey Sammons, autor de Beyond the Ring - The Role of Boxing in American Society, comenta: "(...) A maioria dos brancos o via como uma ameaça à ordem social estabelecida para a civilização anglo-saxã, e eles estavam empenhados na sua destruição como um poderoso ícone negro. Tentativas de tirá-lo de circulação através de novas leis fracassaram em sua maioria, mas o governo dos Estados Unidos estava silenciosamente usando
as leis existentes para criar um caso que o removeria de seu curso e daria um exemplo a todos os negros que saíssem do caminho estabelecido".
E foi em meio a esse rebuliço que Miles Davis criou uma de suas mais memoráveis obras: The Jack Johnson Sessions
The Jack Johnson Sessions, álbum de 1970, dedicado ao primeiro negro a conquistar o título mundial de boxe na categoria pesos pesados, é uma homenagem à base de jazz, com muita influência r&b.Esse álbum surgiu um ano após Bitches Brew, um dos mais revolucionários e também mais vendidos álbuns de jazz de todos os tempos. Na época, Miles Davis estava, principalmente, sob influência da música de Jimi Hendrix, que fazia seu rock com levada soul, ao lado de Buddy Miles (bateria) e Billy Cox (baixo), formando a Band of Gypsys.
Foi então que Davis sentou-se com Jack DeJohnette (baterista) em sua Lamborghini e foram dar uma volta. Durante o percurso colocou no toca-fitas um tape de Buddy Miles, deixou rolando e ficou sem dizer nada, como contou DeJohnette: “Miles tinha a sua maneira de mostrar as coisas sem dizer uma única palavra”. Quando, então, DeJohnette perguntou: “Você quer que eu toque esse groove com a minha técnica, não é isso?” Miles abriu um grande sorriso e disse: “Yeah!”.
Como grande apreciador da arte do boxe, Miles costumava treinar com freqüência e acompanhava ao vivo todas as lutas que podia.
Era um dos que costumavam relacionar o jazz ao boxe. Uma vez lhe perguntaram se, quando tocava, pensava como um boxeur. Ele respondeu que o boxe é uma forma de arte. Quando Sugar Ray Robinson (famoso boxeador da época) dava um golpe seguido por uma combinação de socos, comprovava que sabia o que vinha depois, para poder se antecipar. Com a banda de Miles acontecia o mesmo. Toda nota que o trompetista tocava era uma preparação para a próxima.
O improviso, principal ingrediente do jazz, é o que o gênero tem de mais belo. E a ligação entre o modo de lutar e o de tocar tem suas semelhanças. Isso se expressa nas combinações, nos recuos, no tempo de reação, e principalmente, na improvisação.
Assim como os boxeadores, os músicos são treinados para serem rápidos, automáticos, para pensar, ouvir e reagir com destreza, e saber a nota que se encaixa melhor. Os notáveis fazem isso
de forma instintiva e extremamente sensível. Isso é o que os diferencia.
Quando se trata de Miles Davis, tudo se encaixa na última nota tocada, é como jab, jab, jab e depois o golpe principal. (Fonte:
http://www.revistatoro.com.br/box.php)
“Durante o resto de 1951 e a primeira parte de 1952, vivi num denso nevoeiro, o tempo todo doidão e explorando mulheres por dinheiro pra sustentar o vício. A certa altura, tinha todo um curral de putas nas ruas trabalhando pra mim. Vivia entrando e saindo de hotéis. Mas não era como as pessoas pensam que é; essas mulheres queriam alguém pra ficar com elas, e gostavam de ficar comigo. Eu as levava a jantar e essa coisa toda. A gente fazia sexo também, mas não muito, porque a heroína tira o desejo sexual. Eu simplesmente tratava uma prostitua como qualquer outra pessoa. Respeitava-as e elas em troca me davam dinheiro pra eu me drogar. As mulheres me achavam bonito, e pela primeira vez na minha vida comecei a achar o mesmo. Éramos mais como uma família que qualquer outra coisa. Mas mesmo o dinheiro que elas me davam não chegava. Eu ainda me via duro.
Em 1952, eu sabia que tinha de fazer alguma coisa pra me livrar das drogas. Sempre gostara de boxear, e achei que podia me meter nessa. Se treinasse todo dia, talvez pudesse tentar seriamente me livrar do vício. Já conhecera Bobby McQuillen, treinador no Gleason’s Gym, no centro de Manhattan. Quando eu ia lá, a gente conversava sobre boxe. Ele fora um grande lutador de peso meio-médio até matar um cara no ringue, quando largou a profissão e passou a treinar lutadores. Um dia – acho que foi no início de 1952 – eu lhe perguntei se queria me treinar. Ele prometeu pensar no caso.
Gleason’s Gym, lugar onde treinavam Fui a uma luta no Madison Square Garden, e depois voltei ao camarin de Bobby, pra saber se ele ia me treinar ou não. Bobby me olhou com um ar verdadeiramente enojado e me disse que não ia ser treinador de nenhum viciado. Aí eu lhe disse que não era viciado – eu ali ligadão pra caralho, quase cochilando de tão ligado. Ele disse que eu não o enganava, que devia voltar pra East St. Louis e tentar largar o vício. Aí me mandou sair do camarin e dar um jeito em minha vida.
Ninguém jamais me falara assim antes, ainda mais sobre meu vício. Cara, Bobby me fez sentir um merda. Eu vivia com músicos que usavam drogas ou não, mas não diziam nada sobre os que usavam. Por isso, ouvir uma merda dessa foi demais, cara.Quando eu era viciado em drogas, os donos de boate me tratavam como se eu fosse um lixo, e o mesmo faziam os críticos. Agora, em 1954, quando me sentia cada vez mais forte e limpo da heroína, achava que não tinha de tolerar mais merda nenhuma deles. Era uma sensação no fundo da mente, e não algo que eu soubesse que sentia ou pensava. Tinha em mim muita raiva, por coisas que me haviam acontecido nos últimos quatro anos; quase não confiava em mais ninguém, e acho que isso tinha algo a ver com minha atitude. Quando íamos tocar nos lugares, eu me mostrava frios com os filhos da puta; me pague que eu toco. Não estava pra puxar o saco de ninguém, nem dar aquela de sorrisinhos pra ninguém. Parei até de anunciar músicas nessa época, porque achava que não era o nome que importava, mas a música que tocávamos. Se conheciam a música, por que tínhamos de anunciá-la? Deixei de falar com a platéia porque eles não vinham me ouvir falar, mas ouvir a música que eu tocava.
Muita gente me achava distante, e eu era. Mas acima de tudo não sabia em quem confiar. Era desconfiado, e essa era a parte de minha atitude que muita gente via; esse retraimento a me dar com as pessoas que eu não conhecia. E por causa de meu vício anterior, também tentava me proteger não entrando em contato muito estreito com muita gente. Mas o pessoal que me conhecia bem sabia que eu não era como os jornais me descreviam.
Eu convencera Bobby McQuillen de que estava suficientemente limpo pra que ele me aceitasse como aluno de boxe. Ia ao ginásio em toda oportunidade que tinha, e ele me ensinava. Me treinou duro. Nos tornamos amigos, mas ele era sobretudo meu treinador, porque eu queria aprender a boxear com ele.
Bobby e eu íamos juntos às lutas e treinávamos no Gleason’s Gym, no centro, ou no Silverman’s Gym, que ficava no Harlem, na Rua 116 com Oitava Avenida (que hoje se chama Frederick Douglass Boulevard, acima da Rua 110), no quarto ou quinto andar de um prédio de esquina. Sugar Ray costumava treinar lá, e quando aparecia todo mundo parava o que estivesse fazendo pra vê-lo.Bobby conhecia bem o giro, que é como chamo o girar dos quadris e das pernas quando se golpeia o adversário. Quando a gente faz isso ao golpear, tem mais poder no soco. Bobby era como o treinador de Joe Louis, Blackburn, que ensinou Joe a dar o giro quando batia. Joe podia derrubar o adversário com um único soco. Por isso acho que Bobby devia ter aprendido com Joe, porque os dois se conheciam e eram ambos de Detroit.
Johnny Bratton também fazia isso. Sugar Ray também sabia do giro. Era um desses movimentos que os grandes boxeadores usavam quando lutavam.
É um movimento que a gente tem de praticar repetidas vezes, até pegar bem, até que se torna quase um ato reflexo, instintivo. É como praticar num instrumento musical; a gente tem de continuar praticando, sempre e sempre e sempre. Muita gente me diz que eu tenho mente de boxeador, que penso como um boxeador, e provavelmente é mesmo. Acho que sou uma pessoa agressiva no que é importante pra mim, como quando se trata de tocar ou fazer o que eu quero fazer. Eu brigo, fisicamente, por dá cá aquela palha, se acho que alguém me prejudicou. Sempre fui assim.
O boxe é um ciência, e eu adoro ver lutas entre dois caras que sabem o que fazem. Como quando a gente vê um lutador disparar um jab na cara do adversário. Se o cara se esquiva, se movendo pra
direita ou a esquerda, a gente precisa saber pra que lado ele vai se mover, e lançar o golpe no momento em que ele desvia a cabeça, pra que ela entre na linha do golpe já disparado.
Isso é ciência e precisão, e não uma merda de uma agressão corporal, como as pessoas dizem.Assim, Bobby me ensinava o estilo de Johnny Bratton, porque esse era o estilo que eu queria saber.
O boxe tem estilo, como a música. Joe Louis tinha um estilo, Ezzard Charles tinha um estilo, Henry Armstrong tinha um estilo, Johnny Bratton tinha um estilo, e Sugar Ray Robinson também – como também Muhammed Ali, Sugar Ray Leonard, Marvelous Marvin Hagler, Michael Spinks, e mais tarde Mike Tyson. O estilo tapa-olho de Archie Moore era um barato.Mas é preciso ter estilo no que quer que se faça – literatura, música, pintura, moda, boxe, tudo. Alguns estilos são elegantes, criativos, imaginativos e inovadores, e outros não.